Crónica de Alexandre Honrado – Michel Serres
No meu passado extremista e inquieto, cheio de asneiras e impulsos, não cabia Michel Serres. Estavam lá outros, é certo, mais aguerridos, mais intervenientes, mais engajados, daqueles que desferiam pensamentos que assobiavam como flechas. Faziam dobrar as ideias políticas, riam-se dos descalabros económicos, enquadravam o social, desmitificavam o género, o sexo, o sucesso, eram cultura de manhã à noite.
Não era importante para quem estava à minha volta que eu me munisse deste ou daquele, que preferisse os mais violentos, que formasse as minha próprias ideias em forjas de fogo amplo, de onde saíam espadas sem sentido destinadas muitas vezes a inimigos imaginários que nunca as mereciam. Eu, que fazia tudo por paixão achava menores frases como “nenhum pensamento vale sem amor; sem ele, nada temos a dizer” e no entanto o pouco que eu tinha a dizer era em nome de um amor que não dimensionava e que levei tempo a definir, para algum mal alheio mas para a criação de muitas cicatrizes próprias que ainda me custam a encarar.
Por isso eu não tinha espaço para Michel Serres, um desses poucos homens capazes de agarrar no caos e na ordem e mostrar aos outros que a cultura é sempre mestiça e não um pano imaculado ou um carvão a absorver a luz alheia.
Serres com uma elegância profunda, dessas que sabem vir do fundo à tona das verdades, chamou-nos polegarzinhos, os pobres coitados que neste mundo desenvolvem mais os dedos polegares do que as virtudes e que têm a ilusão infantil de que comunicam com o próximo, não porque o olhem nos olhos ou entendam a temperatura e as nuances da sua pele, mas porque graças à tecnologia, lhe mandam, de minuto a minuto, pensamentos difusos, obtusos e muitas banalidades, de manhã à noite, teclando freneticamente nos seus pequenos instrumentos de comunicação – o telemóvel é o mais generalizado – desenvolvendo os polegares e a solidão. Gente curvada – nada vertical, portanto.
Michel Serres era um filósofo e a sua filosofia perspicaz e flexível, solícita à reflexão sobre os principais problemas que afligem a humanidade. Encarava a ciência, bem de frente, sem medo de ofuscar-se com alguma luz que ela eventualmente emanasse. Mas fazia-o também com os deuses e com os homens, sendo que muitos desses, ambos, se confundem pelo que gostariam de ser e não conseguem.
Michel Serres, crítico, dotado de um humor invulgar, tinha uma infinita paciência para a criança em que se tornou o ser humano dos nossos dias – tu e eu.
Era feito de conceitos e ideias, o que nos tempos que correm não é coisa boa para a imensa maioria dos imbecis que se cruzam nas ruas, de olhos baixos e telefone na mão: os polegarzinhos, cada qual a mexer-se como inseto ao redor da lâmpada traiçoeira que aperta amorosamente entre as mãos e que estimula à força de impulsos de polegar.
Michel Serres morreu no passado dia 1 de junho. Era só isto o que eu tinha para dizer, por agora.
Alexandre Honrado
Historiador
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